São 9h da manhã e já lavei o rosto, comi meu café da manhã e escovei os dentes como faço todas as manhãs. Estou usando um vestido marrom de manga curta que combina com meu cabelo castanho. Estou mais confiante e segura nesta cor. A única coisa que me impede de sair do apartamento é que meu irmão ainda não acordou e não consigo decidir se isso é algo bom ou ruim. Se mamãe ainda estivesse viva e me ouvisse dizer algo, mesmo silenciosamente em minha mente, ela me corrigiria. "Seja mais específica!".
Especificamente, não consigo decidir a ausência do meu irmão indica que terei um dia de sucesso ou não. Meu irmão é o fator determinante no tipo de dia que terei. Por exemplo, se ele começar o dia com "pare de ser uma idiota, você precisa desistir dessa merda de petição", sem dúvida serei ridicularizada na rua, quase garantido que não conseguirei nenhuma assinatura. Se ele começar o dia com "tenha um bom dia", provavelmente conseguirei que dez a quinze pessoas parem e escutem minha apresentação, possivelmente até mesmo adicionando a assinatura na petição. Isso não é apenas minha opinião, eu tenho uma planilha e faço anotações, há dados quantitativos para fundamentar minha crença.
Bato meus dedos na tampa do pote de doce de figos na mesa, decidindo se eu devo esperar ou ser mais proativa. A batida rítmica alivia minha ansiedade e me permite sentar por alguns momentos adicionais para contemplar o que devo fazer. Além de exigir especificidade, minha mãe acreditava que eu precisava ser mais ambiciosa. Duvido que ela ficaria satisfeita com minhas ações diárias atuais, apesar de meu compromisso zeloso.
Todos os dias, nos últimos quatro meses, tenho coletado assinaturas para abolir os serviços notariais e de registro, popularmente conhecidos como cartórios. Já houve ocasiões em que as pessoas pensaram que me refiro a carros ou carteiros, mas estou me referindo aos arcaicos serviços notariais de nosso país. Não sou a primeira pessoa a propor esta ideia, outros políticos sugeriram que os serviços fossem privatizados ou mesmo eliminados, mas sou a primeira, tanto quanto sei, a fazê-lo por princípio e não para propaganda eleitoral.
Existe uma versão online da minha petição com cinquenta e sete assinaturas em apoio à erradicação dos cartórios. Eu mando mensagens no WhatsApp para amigos, familiares e estranhos, se eles me derem seus números, perguntando:
Por que aceitamos um sistema burocrático tão explorador? Se o Brasil quer realizar seu potencial democrático, temos que nos livrar dos cartórios!
Eles geralmente não respondem nem assinam.
Tenho 320 assinaturas na petição física, um número distante das 5.000 que defini como minha meta inicial. Parece que as pessoas não se importam com questões substantivas de qualidade de vida, mas fingem que a virose e a pandemia atual que são os motivos para se esquivar de mim. Eu sei, com certeza absoluta, que se as pessoas realmente parassem para pensar em quanto os cartórios lucram com burocracia desnecessária, explorando nossa desconfiança cultural e perpetuando um sistema colonial de monopólios que se manteve quase inalterado por centenas de anos e concentra imenso poder nas mãos de poucos, eles assinariam a petição também. Meu irmão diz "ou não, com pandemias globais e mudanças climáticas e fome e políticos corruptos que estão desmantelando a educação pública e a saúde, eles provavelmente se preocupariam com outra coisa." Ao que eu respondo: “todos nós temos uma causa e esta é minha”.
Um som estrondoso para meus dedos em seus lugares e eu inclino minha cabeça em contemplação, na esperança de que meu irmão esteja acordando. Quando o som se repete, desta vez mais alto e mais choroso, percebo que é a geladeira.
Preferia me preocupar com o pantanal ou com o SUS, mas o que me acorda suando frio às 4 da manhã é que os cartórios ganharam quase 100 bilhões de reais na última década. Enquanto dois terços vão para o financiamento do judiciário e outras entidades estaduais, um terço de 100 bilhões é receita. Mesmo depois de levar em conta suas despesas com recursos humanos e contas de luz e água, eles estão ganhando quantias obscenas de dinheiro. Por mais que soframos com a crise econômica, eles só vão aumentando sua arrecadação com papelada excessiva e carimbos e selos coloridos, o que os torna o maior obstáculo para viver numa sociedade livre e democrática. Pelo menos, na minha opinião.
Nunca pensei muito em cartórios até que minha mãe morreu e tivemos que assinar o inventário. Alguns inventários devem ser feitos através do sistema judiciário, mas como eu e meu irmão estávamos de acordo sobre como dividir a herança, pudemos usar o cartório. Um ponto a favor de sua existência, eu entenderia mais tarde, porque eles alegam que estão liberando o sistema judiciário para outros assuntos. Não acredite na propaganda! "Liberar os tribunais" é simplesmente outra maneira de lucrar conosco.
Minha mãe morreu aos sessenta e nove anos, de forma bastante inesperada devido à sua falta de problemas de saúde e que a expectativa de vida de uma mulher no Brasil é de 80,1 anos. Eu esperava mais dez a doze anos de convívio, cinco no mínimo, mas ela morreu de aneurisma cerebral e mais uma vez me lembrei que os números nos dizem o que é possível, não nos dão garantias. Meu irmão a encontrou no meio da tarde e me ligou no meu local de trabalho, depois de ligar para o SAMU. Ele tinha quase certeza de que ela estava morta, mas não queria que eu o culpasse se ela não estivesse.
O velório foi o dia seguinte, e dentro de um mês eu pedi as contas do meu emprego e estávamos prontos para assinar o inventário no cartório.
Poucas vezes na minha vida precisei utilizar serviços notariais, visto que não sou casada, não tenho carro ou propriedade e não conduzo transações comerciais. Desde que a minha mãe morreu, já visitei dezessete dos 126 cartórios na cidade de São Paulo e eles variam muito em tamanho, decoração de interiores e conforto.
9h15 e vou ao banheiro, batendo os pés e abrindo a porta com força excessiva. Eu finjo que bati meu dedão do pé e solto um gemido. Meu irmão tem o sono leve e espero acordá-lo.
Um dos dias mais marcantes da minha vida foi num cartório, tecnicamente um tabelião de notas, com meu irmão e nosso advogado, para assinar o inventário. Era estreito e comprido, tudo numa cor verde neon, com iluminação fluorescente forte, que definitivamente não era LED. É um dos mais apertados dos que visitei em minhas pesquisas para entender mais sobre cartórios.
Tive que reconhecer minha firma, uma das tarefas mais simples que podem ser realizadas em um cartório, mas por algum motivo que ainda não entendo até hoje, fiquei muito ansiosa para assinar exatamente da mesma forma como a assinatura no meu RG. Meu irmão estava esperando lá fora, pois sua assinatura havia sido autenticada anos antes, quando ele comprou um carro que já vendeu.
Esperei noventa minutos, numa fila de vinte pessoas, no meio da pandemia. Minha máscara de pano e álcool gel foram pouca proteção contra a ventilação péssima, a aglomeração e um vírus altamente transmissível. É um milagre que eu não tenha saído de lá com Covid-19, mais um motivo para a abolição desse sistema arcaico.
Enquanto esperava, eu praticava minha assinatura na palma da mão por falta de papel e lugar para escrever, mas em pouco tempo minha mão já estava preenchida e, para aliviar minha ansiedade, eu fiquei observando o meu redor. Uma mulher com duas senhas antes da minha ficava tossindo discretamente. Atrás de mim tinha um homem grosso e uma mulher raivosa esperando sua vez para registrar o divórcio. A conversa deles foi cheia de palavrões e acusações.
Quando o cartorário finalmente me chamou, senti minha garganta secar enquanto pegava a caneta preta. Assim que minha mão entrou em contato com o plástico da caneta, tive uma visão acertando-o no olho. Não era tanto uma imagem detalhada do ato, mas sim uma sensação vaga de possível violência e caos. Pisquei rapidamente, chocada com o horror do meu pensamento. Permaneci imóvel, com medo de que meu próximo movimento fosse a execução do crime que acabei de conjurar em minha mente.
— Você está bem? — ele perguntou.
Eu não conseguia olhar para ele, minha boca escancarada em resposta pois eu definitivamente não estava bem, mas não havia como explicar o porquê. Depois de uma pausa de quase um minuto, trouxe minha mão para o cartão 3x5 usado para a autenticação e rabisquei meu nome na caixa vermelha. Ele estudou a assinatura no meu RG e comparou as duas.
— Você tem que fazer isso de novo. Deve ser exatamente igual à sua assinatura aqui.
A impaciência em sua voz me fez tremer. Eu não podia me dar ao luxo de ficar com raiva dele; dada a natureza horrível de meus pensamentos, eu não sabia mais do que era capaz. Em vez de responder, levantei-me e fugi do cartório, passando correndo pelo meu irmão, e desci a rua sem destino claro em mente. Pensei em me entregar à polícia, mas não consegui admitir em voz alta o que acabou de acontecer. Em vez disso, fui para casa e me escondi no meu quarto.
Isso aconteceu há sete meses. Levei mais duas tentativas para reconhecer minha firma e assinar o inventário, para grande aborrecimento de meu irmão. Temia entrar no cartório e pensamentos violentos indesejados começaram a me atormentar em momentos aleatórios e imprevisíveis. Precisei de três terapeutas para chegar a um diagnóstico: transtorno obsessivo-compulsivo com ruminações agressivas e compulsões invisíveis.
Eu jogo água fria no rosto e meu rímel escorre um pouco. Com um lenço de maquiagem, eu lentamente limpo as listras pretas borradas e canto alguns refrões da minha música favorita. Penso em passar batom, mesmo que não seja visível por baixo da máscara e provavelmente manche meu rosto.
Se você disser às pessoas que deseja abolir os cartórios, elas provavelmente a rotularão de louca e, se você revelar que tem TOC, tem uma boa chance de que elas reagirão com uma piada sobre a importância de lavar as mãos durante uma pandemia ou comentarão que isso seria um benefício para a limpeza de sua casa. É possível que a revelação anterior seja vista como pior do que a posterior, apesar do fato de que o transtorno é bem mais complexo e devastador do que a higiene excessiva. A abolição dos cartórios economizaria muito para o cidadão comum, mas o desejo de mudar o sistema é considerado a real doença.
Foi um enorme alívio saber que um cérebro disfuncional, e não um personagem psicopata, é o responsável por meus pensamentos inexplicáveis. O terapeuta cognitivo-comportamental que me diagnosticou sugeriu uma forma de tratamento chamada resposta de exposição e queria que eu detalhasse ativamente meus pensamentos intrusivos e aterrorizantes — esfaquear alguém no olho, me tornar uma estupradora, atirar em pedestres da janela do meu apartamento — garantindo-me que não sou meus pensamentos e que o exercício me libertaria do meu terror. Naquela época, eu já tinha descoberto que focar minha energia na eliminação de cartórios era muito eficaz no combate ao meu TOC, permitindo-me entrar em outros cartórios, sem medo, e suprimindo a maioria dos meus pensamentos intrusivos. Ele me informou que a petição era um comportamento compulsivo associado à minha ruminação obsessiva sobre meus pensamentos intrusivos, mas prefiro meu método ao tratamento sugerido.
— Egnaldo? — eu pergunto, batendo levemente em sua porta. Agora são 9h20. Ele não trabalha desde que a mãe morreu, mas geralmente se levanta de manhã. Ele está morando no quarto de hóspedes desde que sua esposa o expulsou.
Eu bato com mais força. — Você está se levantando? Você concordou em encontrar o técnico que vem trocar o filtro.
O técnico disse que chegaria entre 9h e 16h, enfatizando que provavelmente seria no final do dia, mas continua sendo uma desculpa legítima para verificar se meu irmão vai levantar e me dar uma noção melhor de como meu dia será.
— Chataloucavadia — ele sussurra sem nenhum comentário adicional, afirmando apenas que está vivo e pode me ouvir.
— Você ouviu o que eu disse sobre o técnico?
— Puta merda, Mirtis.
Eu franzo a testa, o que faço com mais liberdade agora que minha mãe morreu. Ele não mencionou a petição, mas as chances são boas de que sua frustração indique um resultado negativo para meus esforços do dia. Eu imagino sua testa brilhante, uma extensão cada vez maior de pele que aumenta conforme seu cabelo vai embora, enquanto ele me xinga. Ele começou a ficar careca aos vinte e quatro anos e esse fato o assombra como nenhum outro. Pela primeira vez em anos, fico irritada com meu irmão.
— Meu, quem se preocupa com o filtro? — ele acrescenta antes que eu possa corrigir sua linguagem.
Não sei dizer se ele está com humor existencial — como um estudante de filosofia que até recentemente trabalhou com vendas de telecomunicações, isso ocorre com frequência — ou se ele está apenas sendo um idiota desagradável.
— Eu — digo, endireitando a frente do meu vestido marrom e batendo meu sapato marrom no chão de madeira. — Eu estou preocupada. E uma promessa é uma promessa, Egnaldo.
Evito lembrá-lo de que ele fica, sem nenhum custo para ele, no meu apartamento, e esse pequeno esforço é o mínimo que ele me deve.
— Você é exatamente como ela.
Minha mão agarra com mais força a maçaneta de latão da porta. Enquanto eu opto por me abster de ofensas, meu irmão nunca resiste à tentação de me diminuir. Há apenas uma ela a quem ele poderia estar se referindo e eu quero ignorar o comentário, mas não consigo.
— Não sou.
Seus pés se arrastam em direção à porta, mas ele não a abre.
— Você é.
Sua voz é alta e posso imaginar seu hálito matinal quente e fétido. Eu sei que ele diz isso para me irritar. A realidade é que Egnaldo é quase uma réplica exata de nossa mãe em tamanho, temperamento e construção facial, mas ele ainda diz isso e eu ainda reajo.
— Não... — eu começo, mas não consigo terminar. De repente, uma memória da minha infância me leva para o passado. Tinha sete anos e minha mãe e Egnaldo estavam sentados na mesa na cozinha, rindo. Quando eu entrei, passando minha mão no rosto para tirar as sobras de sono, as risadas se transformaram em cacarejas insuportáveis.
— Você não consegue soletrar seu nome, burra.
Vi que eles tinham pego um desenho que eu fiz de uma árvore com flores amarelas. Um presente para minha mãe.
— Não errei — eu disse, minha voz rouca com cansaço e medo. Ele insistiu em continuar me ofender até que eu tentei pegar o papel para apontar cada letra e me defender. Antes que eu conseguisse, minha mãe interferiu, amassando o papel na sua mão.
— Sua letra é ilegível e horrível. Como você vai fazer algo notável na vida com uma caligrafia assim?
Eu olho para baixo para o meu punho branco e noto que a maçaneta da porta quase se parece com uma faca na minha mão. Minha frequência cardíaca triplica de velocidade e estou chocada com a observação. Por que eu pensei isso? Isso significa que quero esfaquear meu irmão? Que tipo de pessoa pensaria algo assim? Algo, não pense algo, grito para mim mesma.
Respiro fundo e repito para mim que é o meu TOC, nada mais. Meus pensamentos são insignificantes, inconsequentes, não uma acusação de minha personalidade. Eu sou uma boa pessoa, tentando fazer o bem no mundo, repito para mim mesma. Os fatos que acumulei cuidadosamente para minha defesa em prol da destruição dos cartórios passam pela minha cabeça: bilhões em lucro, barreiras à produtividade, um legado colonial injusto e disfuncional. Eu sou uma boa pessoa, tentando fazer o bem no mundo. Depois de mais alguns minutos, minha frequência cardíaca diminui.
— Você está tendo um de seus ataques, não é? — A voz dele está mais baixa agora, cruel, assim como a da mamãe. — Pobre Mirtis maluca. — Ele bufa e eu quase respondo quando penso na caneta que peguei aquele dia no cartório. Sem mais uma palavra, eu volto para a cozinha.
Se o filtro não estiver novo quando eu chegar em casa, você pode encontrar um novo lugar para morar.
Mirtis
Minha assinatura é igual à do meu R.G.