No cantinho de uma rua sem saída, entre uma fábrica de uniformes militares, um hospital militar, e o condomínio de bolha 486.439-0, escondida por um pé de abacate enorme, fica a última casa residencial na cidade de São Paulo. Construída em 1964, com três cômodos, um banheiro, um pequeno quintal e isento de IPTU, a única distinção notável da casa é ser a única que existe na cidade. Um fato que era inimaginável poucos anos antes virou uma realidade inquestionável em 2028 — como tudo na época do Grande General.
Reeleito em 2022, em perpétua, uma das primeiras ações do Grande General foi deslocar toda a população de cada bairro de todas as maiores metrópoles da nação Brazuela para bolhas condominiais, lideradas por coronéis fiéis e entusiasmados e vigiadas por soldados dedicados e felizes. A transição populacional foi surpreendentemente organizada, graças ao plano de remoção elaborado com construtoras iluminadas e bancos judiciosos em junho de 2020, e facilmente implementado sem muito protesto depois que o Grande General assumiu seu legítimo lugar como pastor eterno de seu rebanho.
Na verdade, ninguém nem percebeu que os prédios subiram e as casas caíram numa proporção exata, só sabiam que casas eram locais de invasão, assalto, sequestro e imposto. Apesar de condomínios serem lugares de aglomeração, um ponto ferozmente negado pelo Grande General quando a imprensa ainda existia e a calúnia e difamação dos esquerdistas reinavam, a sociedade abraçou tranquilamente a necessidade de uma existência exclusivamente apartamental e mostrava sua gratidão profunda em marchas anuais. Na consciência coletiva, a última casa residencial foi demolida em novembro de 2025.
Isso foi que o menino Felipe, de 11 anos, aprendeu e nunca questionou, até o dia em que ele senta na janela do seu apartamento no segundo andar, sem acesso a nenhuma forma de entretenimento porque a eletricidade está desligada e sua arma temporariamente apreendida — em punição por ter usado uma meia roxa, não suficientemente azul — e vê aquilo que contraria tudo em que ele acredita.
Olhando pela janela, ele nota uma árvore, algo que nunca tinha notado antes, de tamanho enorme e com frutas suculentas. Por causa do tédio, começa a contar as folhas verdes, a cor mais abençoada por Deus, até que o vento levanta um galho e revela o telhado vermelho feito de cerâmica embaixo. É uma cor com que ele tem pouca familiaridade por ser a cor de comunistas e satanistas, e por ser o material do telhado utilizado apenas em casas. Casas que ele acredita não existirem mais.
Felipe nunca entrou em uma casa, todas as pessoas que ele conhece moram em apartamentos, mas ele reconhece o telhado como algo que pertence a uma casa por causa de uma foto famosa do Grande General na infância. Voltando da caça, ao lado de uma onça pintada morta, o Grande General, com mãos ensanguentadas, sorri em frente da casa da avó. A casa da foto tinha o mesmo telhado.
É possível? Uma casa ao lado da bolha 486.439-0 dele? Não tem alguém que possa responder suas perguntas. Ele está sozinho, os pais trabalham na fábrica de uniformes e as irmãs mais velhas são cozinheiras no exército brazuelano, mais um exemplo de como o Grande General valoriza a contribuição feminina no país. Ele pensa em descer e investigar, mas além de estar de castigo por uso indevido de meia colorida, não é o dia da semana para ele perambular pela cidade. Tudo indica que deve ficar onde está. No entanto, sem telas e armas para ocupar sua atenção, a possibilidade de uma casa tão perto e como poderia vê-la acaba por tomar conta de todos seus pensamentos.
Mesmo sem permissão para sair, devido à punição e à restrição de movimento necessário pelo bem-estar de todos, ele pensa num jeito. Ele vai dizer que está treinando para a competição internacional de CROSS FIT. Desde 2024, quando Brazuela se recusou a participar (não foi proibido, como alguns boatos sugeriram) nas Olimpíadas, um evento satânico para comunistas e viados, o Grande General substituiu o futebol pelo CROSS FIT como o esporte nacional, e montou eventos nacionais e internacionais, com Rússia e Bielorrússia e as Filipinas e Coreia do Norte e a República Independente do Texas, para demonstrar sua superioridade global. Felipe é um dos campeões da categoria júnior e tem permitido o acesso livre a qualquer atividade física a qualquer hora. Ele nunca abusa desse privilégio — não porque ele é bonzinho, mas simplesmente por nunca ter tido um motivo — mas hoje ele vai.
Ele não precisa trocar de roupa, porque vive no uniforme de CROSS FIT: cueca com estampa da bandeira, shorts (com bandeira na parte traseira) bem curtos para não restringir os movimentos bruscos e uma regata na cor da bandeira. A meia é normalmente branca ou azul, mas quando ele achou um par roxo, abandonado pela irmã, não resistiu à tentação de usá-lo. Hoje, ele está de meia branca.
Ele usa a escada para descer os dois andares, com mais animação do que tem sentido desde que ganhou o bronze no campeonato de CROSS FIT em 2027. Felipe é forte, jovem, padrão em todas as formas valorizadas pelo regime e admirado por suas habilidades físicas. Ele não tem noção de quanto sua curiosidade e confiança podem destruir sua vida.
— Oi, champs — os soldados o saúdam.
— Oi, champs — ele responde. Ele se nomeou Felipe anos atrás, mas para sua família e o resto da sociedade ele é Champs2348992048350. — Vou treinar.
Os soldados, Champs2348992042102 e Champs2348992041456, olham para seus pés.
— Não pretende quebrar nenhuma outra regra, né? — eles perguntam em sincronia. Felipe admira a capacidade deles de recordar as infrações das centenas de membros da bolha.
— Jamais — ele afirma, com uma certeza indubitável, pulando um pouquinho em preparação para seu suposto treinamento. — Hoje o foco é SP, PJ e OHS. Todo o possível para ganhar! — Felipe ama que CROSS FIT tem sua própria língua e só os praticantes do esporte entendem de verdade o que cada coisa significa.
— Fantástico — os soldados felizes dizem, com a empolgação de fãs verdadeiros do esporte. — E quando você voltar, pode nos ensinar como fazer aquela pistola-burpee manobra que você fez para o Grande General na marcha anual?
— Será um prazer, champs! — Ele faz o movimento obrigatório de dar uma salva de tiros com sua mão em despedida e sai pela porta.
Fora do prédio, ele começa com corridas curtas de intensidade alta, indo cada vez mais perto do pé de abacate. A adrenalina aumenta a cada instante, eliminando qualquer receio e vestígio de bom senso. Apesar do que Felipe viu, realmente não tem mais casas, o próprio Grande General fez o anúncio. Felipe tinha 8 anos na época e lembra bem os aplausos e rejúbilo que acompanharam a fala. Se o que ele viu pela janela é uma casa de verdade, o Grande General mentiu ou o Grande General não sabe. Seria melhor ele não descobrir qual das duas possibilidades era verdade.
Mas ele é um menino jovem que nunca sofreu uma punição maior do que uma suspensão de eletricidade e uso de arma, então quando um galho de árvore cai até o chão e revela a imagem inconfundível de uma casa, ele não pensa duas vezes em avançar. Encantado com o cheiro de canela e cravo em volta do lar, ele se aproxima mais e mais. Janelas com vidro ondulado de uma forma que ele nunca tinha visto e uma porta com pássaros e flores esculpidos na madeira são irresistíveis. Ele toca as superfícies.
— Por que um menino alto e moreno está em frente da minha casa? Tu és jovem demais para o jogo do bicho, tu não achas?
A voz melódica e inesperada é tão assustadora quanto o comentário. Uma senhora com cabelo branco, uma pequena inclinação nos ombros e uma tigela nas mãos olha para ele sem piscar. Ela está descalça, e as unhas dos pés estão pintadas de vermelho-laranja, uma cor proibida até que ele saiba. Mas antes de pensar na figura em frente dele, Felipe nota as partes mais incríveis na fala dela: moreno, casa, jogo do bicho.
Ele olha para seu próprio braço em descrença. Em 2023, depois que o Brasil se transformou em Brazuela com a conquista da Venezuela, o Grande General aboliu todas as categorias de raça, dizendo que todos os brazuelanos eram brancos. Palavras como negro e pardo e indígena e racismo institucional foram extintas, junto com trans e cis e orgasmo feminino e direitos humanos. Ninguém nunca chamou Felipe de moreno ou de qualquer coisa que não fosse Champs2348992048350. Repetir essa palavra resultava pena de morte.
Se isso não fosse suficiente para chocar, ela mencionou o jogo do bicho, que foi abolido em 2022. O pai dele jogava diariamente antes da proibição e ainda tinha o último calendário da Mega Loterias daquele ano, agradecendo a preferência e mostrando os bichos e grupos. Avestruz/jacaré foi a combinação preferida do seu pai no milhar.
Felipe começa a suar e flexionar os músculos dos braços, não morenos, ele afirma em sua cabeça. Era uma coisa investigar a ideia de uma casa, era outra estar num lugar que viola tudo que ele compreende como certo e errado.
Ele não é moreno, casas não existem e o jogo do bicho não continua.
— O gato pegou tua língua?
Felipe fecha os olhos, horrorizado que a senhora mencionou o animal odiado pelo Grande General. Quando a caça de gato foi liberada em 2024, foi o único momento que a população se recusou a ir para a marcha anual. Tutores de gatos aceitam qualquer tipo de tortura e abuso, que não seja contra seus gatos. Num ato de generosidade, o Grande General entrou em acordo e em troca, pela eliminação da caça de gatos, ninguém nunca mais poderia falar sobre os bichos. A eliminação de vídeos de gatos do YouTube causou a falência do site.
A senhora abre a boca e Felipe entra em pânico.
— Não, por favor, não! Sou apenas um menino, não tão alto, com certeza não moreno, e com língua. Pensei que eu vi uma casa, mas entendi que não vi nada.
A senhora solta um sorriso amplo e tira um pote de vidro de trás do seu avental. Uma coleção de pedras verde-escuras num molho transparente. Felipe fica aliviado que não é um gato ou mais da cor vermelha.
— Entendi. Tu estás com medo, mas se tu comes este aqui tudo ficará melhor.
Ele teme que seja feijão, alimento extinto desde 2026, mas é muito grande para ser aquilo.
— Agradeço, mas estou de regime para o campeonato regional.
— Tu jogas futebol então?
Gotas de suor escorrem pelo seu pescoço. Felipe normalmente é chato sobre comida, mas o medo crescente dele está confundindo seu normal. O terror de tanto ilícito numa tarde só deixa ele com pressa para sair.
— Quero! Um, só um. Por favor — ele adiciona fracamente.
Ela abre a tampa, lança uma bola redonda e passa o garfo para ele.
— Bom apetite — ela diz e ele enche a boca em reação a mais uma fala proibida. O sabor do cravo é a primeira coisa que ele nota. Dá uma sensação quente, quase ardida, e familiar. O sabor de nostalgia, ele pensa sem entender o que a palavra significa. Depois vem o doce do açúcar e a textura borrachuda do figo.
— É um doce? — ele pergunta em confusão. O único doce que ele tem visto na vida são latas de leite condensado.
— Sinto pena de ti, menino sem cor, valentia e paladar. Tua vida se resumirá a esse único ato de curiosidade, que depois da sua última mordida tu jamais lembrarás. Obediência dócil e submissão silenciosa não fazem uma vida verdadeira. Tua paz custa o que realmente importa.
Ele para de mastigar e contempla suas palavras, sabendo, sem saber como, que quando ele engolir ele não vai ver ou cheirar ou saber o que aconteceu nesses poucos minutos. Ela continua o encarando com seus olhos castanhos, que transmitem sabedoria e clareza. Naquele instante ele anota a cor da sua pele e engole a última mordida.
Champs2348992048350 ganhará vários campeonatos, nunca mais usará meia roxa e a partir daquele momento é salvo de todos os pensamentos heréticos que existem fora da sua bolha. O desespero de uma vida inútil a serviço de um ditador cruel está escondido numa memória esquecida de um menino moreno e alto de 11 anos chamado Felipe que nunca existiu.
Obrigada pela companhia nesses últimos meses! Voltarei com mais reflexões, angustias, dicas e contos 11 de janeiro de 2022. que o novo ano seja….novo. beijocas!
Um futuro horrível mas possível....triste demais! Vamos lutar e resistir!!!!!